segunda-feira, 29 de junho de 2020

O Idiota


Por Pachá


É A LITERATURA que nos revela, como acusa o escritor Hadj Garm Oren, que 'todo indivíduo, mesmo o mais restrito à mais banal das vidas, constitui, em si mesmo - um cosmo. Traz em si suas multiplicidades internas, suas personalidades virtuais, uma infinidade de cidades internas, suas personalidades virtuais, uma infinidade de personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no imaginário, o sono e a vigília, a obediência e a transgressão, o ostensivo e o secreto, pululâncias larvares em suas cavernas e grutas insondáveis. Cada um contém em si galáxias de sonhos e fantasias, de ímpetos insatisfeitos de desejos e amores, abismos de infelicidades, vastidões de fria indiferença, ardores de astro em chamas, ímpetos de ódio, débeis anomalias, relâmpago de lucidez, tempestades furiosas...'.


O texto acima, certamente não comunga como é visto os personagens de Dostoiévski, segundo alguns críticos, não há biografia nos personagens do escritor, eles não nascem, crescem, reproduzem e morrem, e de fato, os romances de Dostoiévski são carentes dessa humanização, mas eu também acredito que ainda sim, estão imerso nesse cosmos que é um único ser humano...


Em o Idiota Dostoiévski faz um retrato da aristocracia russa por meio de um indivíduo, príncipe Liev Nikolaievitch Michkin, que por vezes, quase sempre, é tido por idiota, por ser desprovido de mesquinharias, egoísmos, vaidades e acima de tudo, por ser guiado por uma compaixão irrestrita, um senso de verdade, e que por essa, quando externada de forma verdadeira cabe o perdão, não importa o ato. O Idiota de Dostoiévski bem pode ser comparado a Jesus, e como religioso, ele usou características de Jesus em seu protagonista, e portanto irreal, dai vem as criticas, destrutivas, já que esse romance fez enorme sucesso editorial. A essas críticas o autor respondeu.

Eu tenho minha concepção do real (em arte), e aquilo que a maioria chama quase de fantástico e excepcional para mim constitui, as vezes, a própria essência do real. O rotineiro dos fenômenos e a visão estereotipada dos mesmos, a meu ver, ainda não são realismo, são até o contrário...por ventura meu fantástico idiota não é a realidade, e ainda a mais rotineira? Ora, é precisamente neste momento que deve haver semelhantes caracteres em nossos segmentos sociais desarticulados da sua terra, segmentos esses que na realidade, se tornam fantásticos.


Em o Idiota há uma presença muito forte de D. Quixote, o "cavaleiro pobre" é a alegoria que coloca Michkin, epilético, assim como o autor, ao lado do delirante e esquizofrênico cavaleiro de Cervantes, e em ambos reina a bondade na forma mais pura de altruísmo e compaixão. Se D. Quixote tinha Dulcinéia, Michkin tem Aglaia. 



O romance tem como conflito maior, a paixão improvável, segundo a alta sociedade de Petersburgo, entre o príncipe, tomado quase sempre por idiota, e a jovem de beleza singular, Aglaia filha de nobre e estimada família. Mas entre eles há uma tentação, Nastácia Flípovna de beleza estonteante, que fazem nobres lhe prometer fortunas, porém é uma mulher que foi amante de outro nobre, ainda jovem, sim, há pedofilia aos olhos de hoje, mas a história é do séc. XIX, que seja. Para reparar o mal que causou a jovem, Toskt está decidido a lhe casar com alguém que lhe garanta o sustento e luxo. Porém Nastácia é uma espécie de força da natureza, inteligente, culta ela vê nesse ato, ainda pior desonra. E está armado o tabuleiro no qual será travado as relações de poder da nobreza russa do séc. XIX.


A riqueza com que é esmiuçado a psicologia dos personagens, e sua natureza em todas as imperfeições que define um ser humano, é a especialidade de Dostoiévski, uma exímio investigador da alma humana. E claro, há sempre um pouco do escritor em cada personagem. Gavrila Ardaliónovitch carrega a relação que o escritor tinha com o dinheiro. É sabido que Dostoiévski era um jogador compulsivo, mal pegava o adiantamento para um romance, já o perdia por completo em jogos, mas ele não era um arrivista, ao contrário de Gavrila que acredita que o dinheiro compra até talento. Há também uma espécie de incursão do autor, por meio do narrador, explicando ou ao menos justificando como torna os tipos mais ordinários e comuns, interessante aos olhos do leitor, uma quebra da quarta parede, e que também entrega uma pouco do processo criativo do autor.


A nosso ver, o escritor deve emprenhar-se em descobrir os matizes interessantes e ilustrativos até mesmo entre as ordinariedades. Para então, traçar uma diferença entre o "comum"e o "ordinário" em seus personagens. Segue.


De fato, não existe nada mais deplorável do que, por exemplo, ser rico, de boa família, de boa aparência, de instrução regular, não tolo, até bom, ao mesmo tempo não ter nenhum talento, nenhuma peculiaridade, inclusive nenhuma esquisitice, nenhuma idéia própria, ser "terminantemente" como todo mundo. Tem riqueza, mas não do tipo Rothschild: a família é honesta, mas nunca se distinguiu por nada; aparência boa, mas muito pouca expressiva; boa instrução, mas não sabe em que empregá-la; tem inteligência, mas sem idéias próprias; tem coração, mas sem magnanimidade, etc. etc. em todos os sentidos. No mundo existe uma infinidade extraordinária de pessoas assim e até bem mais do que parece; como todas as pessoas, elas se dividem em duas categorias principais: umas limitadas, outras bem "mais inteligentes"...pag. 516


Os valores que norteiam essa sociedade é objeto de análise e também laboratório para Dostoiévski compor os matizes a que se refere, não basta ser bom é preciso ter compaixão. Não basta ser verdadeiro é preciso ser original. 

Há também, de forma implícita e sutil, um embate entre democratas socialistas e o poder estamental vigente, que considerava aqueles niilistas, este uma ameaça para o pensamento da Russia e o romance de Turguêniev , Pais e Filhos ajudou a alavancar as idéias niilistas, e Dostoiévski como religioso, na igreja ortodoxa, critica o niilismo, mas é tido certamente como progressista, pois poucos escritores do seu tempo se importou tanto com o social como Dostoiévski que via na literatura um meio de elevação da consciência e despertar moral diante das desumanas condições em que viviam o povo russo no séc. XIX, e para alguns, não era possível conceber a literatura como meio de protesto.


Entrevista como Paulo Bezerra tradutor de vários livros do Dostoiévski.






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Romances

1846 — Gente Pobre (Бедные люди)
1846 — O Duplo (Двойник. Петербургская поэма)
1848 — Noites Brancas (Белые ночи)
1849 — Netochka Nezvanova (Неточка Незванова)
1861 — Humilhados e Ofendidos (Униженные и оскорбленные)
1862 — Recordações da Casa dos Mortos (Записки из мертвого дома)
1864 — Notas do Subterrâneo (Записки из подполья)
1866 — Crime e Castigo (Преступление и наказание)
1867 — O Jogador (Игрок)
1869 — O Idiota (Идиот)
1870 — O Eterno Marido (Вечный муж)
1872 — Os Demônios (Бесы)
1875 — O Adolescente (Подросток)
1881 — Os Irmãos Karamazov (Братья Карамазовы)

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