quarta-feira, 20 de maio de 2020

O Espelho

Por Pachá

Tido pela critica especializada como a obra magna de Tarkovski, o Espelho de 1975, é uma narrativa não linear, para dizer o mínimo, já que o filme se desenrola em fragmentos que mistura passado e presente de um sujeito, Aleksei (Filipp Yankovskiy) que a beira da morte, tem um flashback, em uma tentativa de autopiedade perante seus familiares, pais, irmãos, filhos e esposa.

Com imagens belíssimas, hipnóticas até, que mais lembram um sonho, que por sua vez não está privado de pesadelos, conduz o espectador por um conturbado labirinto de situações e personagens que se misturam a imagens de arquivos, deixando claro, em minha percepção, de que se trata de uma obra autobiográfica a partir da memória do diretor e de como elas se apresentam para ele, dai a montagem mais intuitiva do que cronológica dos fatos. Os elementos sensoriais muito presente na obra do diretor, como vento, música, pintura compõe, essa imagem idílica e ao mesmo tempo árdua da infância que o protagonista quer alcançar, e que não importa se existiu ou não, e sim  o conforto na experiência onírica.

A mim, me impressionou bastante a imagem que ele carrega da mãe, o jeito de segurar o cigarro, o jeito de sentar na cerca, o olhar que por vezes se tornava assustador. A experiência em que a mãe é impelida a matar um galo, é duplamente pavorosa, já que o desconforto da mãe é incorporado a seu próprio terror, a própria visão da mãe como uma espécie de bruxa, que levita é o pesadelo inerente ao sonho. E toda a sequencia em que a mãe por necessidade decide vender os brincos para uma vizinha, é doloroso, humilhante para ambos, mãe e filhos. A cena do fogo na casa do vizinho e o primeiro contato com a morte. São cenas captados por Georgi Rerberg (1937-1999) com um rigor e esmero que encanta e nos deixa a sensação de estar diante de uma obra magnifica.


O título do filme, o espelho, não é a toa, ou uma metáfora particular do diretor, já que se trata de uma obra autobiográfica, e sim como elemento que situa o espectador, e o próprio protagonista, pois é a partir do espelho que há transição entre realidade e sonho, passado e presente. As interpretações são delicadas, principalmente da mãe, Natalya (Margarita Terekhova) presente em quase todas as cenas, e detentora da maior porção de memória de Aleksei, já que seu pai era ausente, e ele perpetuou esse comportamento, sendo ele também um pai ausente, fato pelo qual nutre uma culpa dostoiévskiana, que por sinal há uma cena toda em cima do escritor.

Tecnicamente o filme é um deslumbramento, com encadeamento muito preciso no uso da linguagem cinematográfica, em alternar cor, preto e branco, imagem de arquivo, mas creio que isso se dá pelo conjunto, e não por algo em particular o que torna a narrativa muito rica ainda que seja fragmentada e sem muito sentido, mas é assim que são os sonhos, um desencadeamento de imagens e fatos que não fazem o menor sentido, mas que alguma forma marca a realidade tão logo emergimos do mundo onírico. 

Certamente o Espelho é desses filmes que ganham o rótulo de chato, por possuir desenrolar lento e sem muito sentido, e que requer muita abstração, em saber que uma obra não precisa necessariamente, para ser boa, estar carregada de sentindo, basta sim estar tudo muito arrumado com imenso poder de verossimilhança, que possa nos convencer de que isso é possível, ainda que não faça sentido, mas que de alguma maneira possamos sentir que é possível.



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