segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Blade Runner


 Por Pachá

Quase quatro décadas de seu lançamento Blade Runner 1982 continua sendo um filme impactante, belo, sombrio, sublime e carregado de questões filosóficas fundamentais nas quais se amparam a condição humana da moral diante de máquinas que querem se equiparar a humanos e estes, não podem admitir tal fato, pois ele, o homo sapiens, também seria reduzido a condição de "máquina" e pior, obsoleta.

O roteiro que é vagamente inspirado em "andróides sonham com ovelhas elétricas?" de Philip K. Dick, que diga-se de passagem, ficou simplesmente deslumbrado com o visual do filme quando foi convidado para ver uma prévia (uma espécie de copião) do longa, ficou tão embasbacado que pediu para ver uma segunda vez. O roteiro, intencionalmente ou não, carrega questões Nietzschiniana na qual a morte de Deus como efeito colateral, criaria uma fé cega no progresso e avanços tecnológico pouco questionado pela sociedade civil, restando as grande corporações, como Tyrrel Corporation, decidir o que é bom para a humanidade. Isso também remete a uma celebre frase de Dostoiévski, "se Deus não existisse, tudo seria possível" e para pessoas como Tyrrel, Deus não está morto, pois ele nunca existiu. É claro que isso não está no arco dramático do personagem vivido por Joe Turkel, e sim interpretações extra campo, das várias camadas que o o roteiro sugere ou deixa para o telespectador criar seu próprio universo pregresso da trama mostrada na tela.

Antes de Blade Runner os filmes de ficção científica tinham uma visão do futuro de alguma forma otimista, de interação entre humanos e extra terrestres harmoniosa, na qual de alguma maneira o homo sapiens encontra um equilíbrio entre progresso e perpetuação da espécie humana. 2001 uma Odisséia já traz uma visão não muito otimista, as máquinas estão no comando, mas para por ai. Blade Runner levanta questões como o meio ambiente, de como esse progresso está tornando a vida no planeta inviável. Na Los Angels de 2019, está sempre chovendo. A superpopulação é visível nas ruas, na qual pessoas se debatem por cada centímetro de espaço. Todos os animais vivos foram extintos, com excessão do homo sapiens, que se vê ameaçados pelos replicantes, andróides criado a imagem e semelhança, do seu criador, Dr. Eldon Tyrrel. Esses replicantes, imunes a doenças, dores, moléstia parecem uma evolução do homo sapeins, porém o criador não pode correr risco de se sentir ameaçado pela criatura a qual deu vida, e por essa razão, a geração de Nexus 6 tem vida limitada em 4 anos. 

A riqueza contida em Blade Runner 1982 é de tal magnitude que nenhum filme conseguiu imprimir tal atmosfera, nem mesmo a continuação Blade Runner 2049 dá conta das contradições da pós modernidade que é a relação entre avanço tecnológico e valor humano, que é centrado em uma das maiores conquistas do séc. XX, que é o direito do trabalho e também um marco da sociedade capitalista. Os replicantes são criados para realizar atividades complexas, perigosas na exploração de outros mundos, outras galáxias. Em Blade Runner as A.I (artificial Intelligence) configuram uma nova relação de trabalho, parece óbvio nos dias atuais que estamos as portas de uma super A.I, mas antes de Blade Runner 1982 nenhum filme tinha feito tal abordagem, veja que mesmo em Alien 8 passageiro, os andróides estão presente, mas eles são apenas máquinas que auxiliam os humanos. Em 2001 uma odisséia idem. O monologo final de  Roy Batty (Rutger Hauer) é emblemático, não só pela dramaturgia, como pelo fato de que o ator, morreu em 2019, o mesmo ano em que se passa a história de Blade Runner.

“Eu vi coisas que vocês, humanos, nem iriam acreditar. Naves de ataque pegando fogo na constelação de Oreon. Vi raios-C resplandecendo no escuro perto do Portão de Tanhäuser. Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.

Rutger Hauer 1944-2019

É bom frisar que essa fala não estava no roteiro. O doc. Dangerous Day: Making Blade Runner trás essas e outras curiosidades e reforça o status de obra prima do longa.

Deckard (Harrison Ford) é um caçador de andróides aposentado que é forçado a voltar a ativa para "aposentar" como ele gosta de falar, quatro replicantes que retornaram à Terra. E nesse ponto o roteiro de Hampton Fancher cria dois objetivos, e múltiplos protagonistas, Roy que deseja se encontrar com seu "pai" Dr. Eldon Tyrrel e Deckard que tem a missão de tirar de circulação esses replicantes. E também tramas paralelas, e a mais pungente é o romance entre Rachel (Sean Young) uma replicante e Deckard, e é dessa trama que surgiu a mais deliciosa interpretação, que foi levantada ainda na versão que foi aos cinemas e reforçada com a versão de Riley Scott, de que Deckard seria também um replicante. Na versão do cinema, há uma fala de Rachel que levanta a suspeita quando ela descobre que é uma replicante ao fazer o teste voight-kampff, e ela pergunta a Deckard; "você já aplicou este teste em você? E na versão do diretor, há um sonho de Deckard com um unicórnio, e que quando ele volta a sua casa para pegar Rachel e fugir já que ela será caçada por outros Blade Runners, ele encontra origami em forma de unicórnio deixado por Gaff (Edward James Olmos), um policial que está sempre na cola de Deckard. E dai surgi a pergunta, como Gaff sabe sobre o unicórnio? Quando Rachel tenta provar que não é uma replicante, mostrando fotos de sua infância, Deckard antecipa essas lembranças, e por fim diz a Rachel que essas lembranças são implantes da sobrinha de Tyrrel.


As cenas com close up de olhos e iris são recorrentes, tanto no filme de 1982 quanto no filme de 2017. Em Blade Runner 1982 o teste para detectar um replicante é feito por meio da analise da reação ocular as respostas pre concebidas pelo aplicador, caçador de andróides. A versão Nexus 6 tem poucas coisas para identificação, diferente da geração Nexus 8 que tem identificação ocular conforme é mostrado em Nexus Dawn 2036. no olho direito. Essa falta de identificação mais rápida em um Nexus 6 justifica o teste voight-kampff, mas há um detalhe dos olhos de um replicante quando em luz direta, eles ficam opacos, como se a pessoa fosse cega, e isso foi motivo para reforçar ainda mais a suspeita de que Deckard é um replicante quando em uma cena seus olhos ficam com essa opacidade.


No filme de 2107, Blade Runner 2049 Wallace (Jared Leto) parece saber que Deckard é um replicante, aliás essa questão foi posta pelo próprio diretor Villeneuve, de que quem decidiria isso seria o próprio ator, já que Ridley Scott e Fancher disseram que a idéia de Deckard ser um replicante  nunca passou pela cabeça deles, Fancher chaga a dizer que isso é até absurdo. Sobre o sonho com unicórnio, o próprio diretor disse que era uma viagem sua, pessoal, uma licença poética dele, Ridley Scott.

Esses debates engrandeceram ainda mais o filme com o passar dos anos, que na ocasião do lançamento, não foi bem de bilheteria e de crítica que acharam o filme uma experiência visual intensa e exuberante mas sem história palpável ou mesmo confusa, mas um grupo de aficcionados pelas histórias de ficção científica, logo se formou em torno do longa e começou a cultuar o filme quando este foi para sessão midnight movies nos cinemas americanos, um horário para filmes arte, experimental, underground. 

O design de produção e concepção artística é um capitulo a parte que pode ser conferido no doc Dangerou Days: Making Blade Runner. A fotografia de Jordan Cronenweeth (1935-1996) e a iluminação utilizada é até hoje reverenciada, e criou um novo estilo de iluminação para os filmes de ficção imitado até hoje. As atuações são ricas em dramaturgia, expressão corporal e facial, Pris (Daryl Hannah) encanta com seu visual e movimentos acrobáticos. Zhora (Joanna Cassidy) em um participação vigorosa, tal qual uma amazona alienígena. Harrison Ford encarnando os detetives da literatura noir, mais precisamente, Philip Marlowe de Raymond Chandler, tão cínico como solitário. Rachel (Sean Young) esbanjando sensualidade, segurança e fragilidade quando a natureza da sua existência vem a tona. Gaff (Edward James Olmos) que criou todo um dialeto para o seu personagem, usando idiomas como húngaro, coreano, chinês, japonês etc. E claro, Rutger Hauer, em minha percepção o grande protagonista/antagonista, é dele as participações mais intensas, existenciais e ao contrário de 2049, ele encarna o lema, "more human than human" literalmente entregando uma interpretação que carrega todas as questões filosóficas que se pode fazer acerca do filme,  e é simplesmente impossível passar incólume a sua atuação. 

Quando se faz a comparação com 2049, e isso é inevitável, fica patente que o que foi criado em Blade Runner 1982 é muito difícil de se copiar, digo, é possível copiar a parte técnica, iluminação, lentes, distâncias focal, cenários, mas o clima que há entre a história e a concepção de criação, atores e cenário, que no caso do filme de 1982 é um personagem a parte, é muito difícil beirando o impossível. Em uma analogia pertinente, o filme de 1982 foi nascido, concebido com alma própria ao passo que 2049 é uma criação sem etérea, sem alma, um replicante.



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