Sult (Fome) 1966

Por Pachá 

É custoso comentar esse filme sem ter lido o livro, Sult (Svalt)  de Knut Hansum que foi traduzido pela primeira vez para o português por Carlos Drummond de Andrade em 1963.

O filme é dirigido por Henning Calrsen e logo um aspecto salta os olhos, a fotografia da gélida Oslo. As sombras de luz dura lembram muito o estilo expressionista alemão, o que dá ao filme, temática ainda mais lúgubre para o drama de um jovem escritor que tenta viver de seu oficio, mas o que encontra é nada se não a indiferença e frieza da população.

Ao assistir o filme lembrei muito de uma passagem do livro biográfico de Nelson Rodrigues, O anjo pornográfico, no qual Nelson que passou fome, diz que quando se tem fome, não se consegue amar ou odiar alguém, que há um esvaziamento de cidadania, lhe é tirado a condição de humano, você passa a ser quase humano. Mas isso não acontece com o protagonista, vivido por Per Oscarsson que realmente toma conta de todas as cenas, literalmente, do filme com uma soberba atuação, que por si só já vale assisti-lo, e é praticamente impossível não se encantar e comover com a sua luta para manter a dignidade, humanidade, mesmo quando tem sua condição reduzida a de um animal irracional, cujo principal objetivo é o alimento e reprodução. Mas o jovem escritor, mesmo com todo delírio consegue a duras penas manter sua sanidade e exteriorizar sentimentos, como, escrever artigos filosóficos, ainda que carregados de sentimentalismo, ou mesmo encantar uma jovem burguesa e ter com esta um breve affair. E se por um lado seu orgulho o auxilia na manutenção dessa dignidade que põe em risco sua própria existência, por outro lado o orgulho o protege de certas humilhações. Como a cena em que após ser expulso do quarto que habitava por não ter como pagar o jovem escritor anda pela rua carregando uma coberta, e que ele num gesto que denota ainda senhor de suas faculdades mentais e consequentemente de orgulho, resolve embrulhar a coberta em uma loja de tecidos, para evitar olhares desconfiados de sua condição.

Henning é um diretor perfeccionista, criterioso em suas escolhas e conduz com muita determinação sua equipe, atento aos mais insignificantes detalhes. E consegue de forma irrefutável criar uma narrativa onde tudo se encaixa de forma perfeita; cenário, figurino e música, esta ultima que em perfeita comunhão com a belíssima fotografia, tornam mais agudo o desespero do jovem escritor.

Fome tem na interpretação de Per Oscarsson a maior beleza, ele é alma do filme. Em principio ele não estava escalado para o papel e sim um ator que vinha trabalhando com Igmar Bergman que a esta altura já gozava de certo prestigio nos países escandinavos, e para tal necessitava da autorização de Bergman para trabalhar com Henning, um então completo desconhecido. Bergman libera o ator, mas o adverte que na novela que filmaria em seguida ele não seria o ator principal, o ator então escolhe continuar com Bergman e declina da proposta de Henning que ao receber a resposta pensa em abandonar o projeto, pois o filme dependia muito do ator de Bergman. Mas por insistência dos produtores Henning aceita fazer uma leitura do roteiro com Per Oscarsson. O encontro acontece em um pequeno restaurante, e como Oscarsson lera o livro de Hansum antes do encontro, entrou no restaurante incorporado no papel, e arrebatou Henning. Que mais tarde agradeceu a Bergman pelo favor, pois o filme jamais seria o mesmo sem Per Oscarsson que ganhou prêmio de melhor ator no festival de Cannes por esta interpretação.

Nos extras do DVD há uma entrevista com Henning na qual ele narra toda a trajetória do filme e os inúmeros obstáculos, locações, atores, musica e até questões climáticas, uma vez que durante as filmagens esperavam-se dias nublados e/ou chuvosos, mas ao contrário, fez-se sol como nunca fizera naquela época em Oslo. É possível notar que o temperamento de Henning como diretor é algo do austero para o mal humorado, e ele não faz questão de esconder isso. O que torna sua entrevista natural, sem escamotear sua verdadeira natureza.

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